Para quem se interessa pela flauta doce, é importante saber que a família da flauta doce não se resume no quarteto Soprano / Contralto / Tenor / Baixo, ou no sexteto quando incluímos a flauta Sopranino e Grande-Baixo.A flauta doce possui uma enorme família de instrumentos, variando tanto em tamanho quanto em “sub-famílias” ou períodos históricos. Geralmente as pessoas que conhecem um pouco do instrumento já conhecem as flautas soprano, contralto, tenor e baixo, facilmente encontradas em resina. Mas existem muitas outras flautas como podemos ver na foto acima, da coleção de instrumentos históricos do flautista Frans Brüggen, que foi maestro da Orquestra do Séc. XVIII e também professor de flauta doce e traverso do Conservatório Real de Haia, na Holanda. A foto mostra da direita para esquerda: uma sopranino em fá, uma soprano em ré, 3 sopranos em dó, uma contralto em sol, 5 contraltos em fá, 3 flautas de voz em ré, 2 tenores em dó, e uma tenor em si bemol. Todas estas flautas são instrumentos históricos originais do período barroco, situado entre os anos de 1600 e 1750.
O consort barroco
A flauta padrão hoje em dia é a flauta barroca, geralmente uma cópia ou uma flauta “neo-barroca” projetada atualmente porém baseada num dos modelos históricos deste período. Geralmente estas flautas são afinadas em Dó ou em Fá, mas existem excessões a esta regra. Estes instrumentos possuem o tubo cônico, com a parte mais estreita em baixo e a parte mais larga perto do bocal, isto torna o som mais escuro e aveludado.
Da mais aguda para a mais grave, com os instrumentos mais comuns destacados, temos:
- Garklein (Dó 6),
- Sopranino (Fá 5),
- Sexta Flauta ou Soprano em Ré (Ré 5),
- Soprano (Dó 5),
- Quarta Flauta ou Soprano em Si Bemol (Sib 4)
- Flauta de Eco ou Contralto em Sol (Sol 4),
- Contralto (Fá 4),
- Flauta de Voz (Ré 4),
- Tenor (Dó 4),
- Quarta Flauta ou Tenor em Si Bemol (Sib 3)
- Basseto em Sol (Sol 3)
- Baixo (Fá 3)
- Grande Baixo (Dó 3)
- Contrabaixo (Fá 2)
Não se surpreenda ao encontrar flautas barrocas diferentes destas acima, elas existem, porém são pouco usadas, geralmente feitas sob encomenda para um repertório muito específico.
Geralmente os instrumentos barrocos possuem a tessitura de 2 oitavas inteiras, a partir da nota mais grave que é descrita em parênteses na lista acima. O dedilhado é bem parecido com o dedilhado “barroco” das flautas atuais, mas alguns modelos históricos possuem algumas variações no dedilhado, e a maioria dos modelos históricos não possuem furos duplos nas notas graves.
O consort renascentista
Na Renascença, a flauta doce era muito utilizada em grupos chamados consorts. Consort é um grupo de instrumentos da mesma família, que são tocados como se fosse um coral. Na Renascença existiam consorts de violas, de flautas doces, de sacabuxas (ancestral do trombone moderno), de cromornes (ou crumhorns, um instrumento de palheta dupla) ou de outros instrumentos.
Os consorts de flautas renascentistas geralmente são afinados em quintas justas, desta forma a nomenclatura dos instrumentos mais usados é ligeiramente diferente dos barrocos.
Os instrumentos renascentistas possuem tubo cilíndrico, com praticamente o mesmo diâmetro no bocal e no final do tubo, o que torna as notas graves muito mais potentes que suas correspondentes nas flautas barrocas.
Abaixo vemos os instrumentos mais comuns destacados:
- Sopranino em Sol
- Soprano em Ré
- Soprano em Dó
- Contralto em Lá
- Contralto em Sol
- Contralto em Fá
- Tenor em Ré
- Tenor em Dó
- Basseto em Sol
- Basseto em Fá
- Baixo em Dó
- Baixo em Si bemol
- Contrabaixo em Fá
- Sub-Contrabaixo em Si bemol
Da mesma forma que as barrocas, ainda é possível encontrar flautas diferentes destas descritas aqui. Eu destaco a flauta da foto acima, a Sub-Contrabaixo em si bemol, fabricada pela holandesa Adriana Breukink. Esta flauta foi encomendada pelo grupo Amsterdam Loeki Stardust Quartet, e foram feitas apenas 4 exemplares. Um deles está com o grupo Royal Wind Music. Esta é atualmente a maior flauta doce do mundo, porém não é a mais grave; e na Renascença já existia uma flauta tão grande como esta, mas era uma “extensão” acoplada na contrabaixo em fá, deixando o instrumento muito desajeitado. A Adriana, sabendo que já existia um instrumento deste tamanho, fez um novo instrumento aumentando as medidas da sua contrabaixo em fá e criando assim um novo instrumento, porém com o mesmo padrão das flautas renascentistas. Esta flauta mede 3,1m de comprimento.
O dedilhado das flautas renascentistas é diferente das flautas barrocas, geralmente com muitas notas de forquilha e uso de meios furos ou “sombra” para afinar algumas notas. O que torna passagens virtuosísticas ainda mais difíceis para serem tocadas. A tessitura destes instrumentos também é reduzida comparada às barrocas, geralmente com apenas 1 oitava e uma sexta, ou com dedilhados muito especiais a partir deste limite. A maioria dos flautistas costuma ter nos instrumentos renascentistas o modelo ideal de sonoridade e timbre, muito mais brilhante e potente que suas irmãs barrocas.
As flautas modernas
Hoje em dia existem muitos fabricantes e luthiers pesquisando e criando novos instrumentos da família da flauta doce. Geralmente estes instrumentos seguem os padrões barrocos de nomenclatura (com instrumentos em dó e em fá), e geralmente são projetados para oferecer alguma característica em vantagem às flautas barrocas ou renascentistas.
As flautas quadradas
Essas flautas foram desenvolvidas pelo luthier alemão Joachim Paetzold, e posteriormente pelo seu sobrinho Herbert Paetzold. Ele se baseou nos tubos internos do órgão, que geralmente são quadrados e de madeira. Como os tubos são flautas que tocam apenas uma nota, ele pensou que poderia fazer uma flauta quadrada, e assim o fez.
A flauta mais aguda é a flauta Baixo (F3), seguida pela Grande-Baixo (C3), Contrabaixo (F2), Sub-Grande-Baixo (C2) e Sub-Contrabaixo (F1). São instrumentos com a resposta de articulação muito presente e grande volume quando comparadas às correspondentes cilíndricas, e são ideais para tocar música moderna, contemporânea e também música brasileira.
Na foto ao lado, Herbert Paetzold e suas criações. Atualmente estas flautas são produzidas pelo luthier Jo Kunnath, na Alemanha.
As flautas dos sonhos
Conforme eu já havia mencionado, as flautas renascentistas possuem o timbre mais amado pelos flautistas, porém seu dedilhado é mais complexo e a sua extensão é limitada. As flautas barrocas possuem o dedilhado mais simples, porém possuem pouco volume.
A luthier Adriana Breukink tentou resolver este problema e criou a Flauta dos Sonhos. Uma flauta com tubo largo como as renascentistas, porém com dedilhado barroco. É um modelo híbrido entre as flautas renascentistas e barrocas, unindo o que cada uma tem de melhor, e são perfeitas para serem usadas em grupos de flautas doces ou para serem tocadas com instrumentos modernos, pois possuem maior projeção que as flautas barrocas.
Todo o quarteto é disponível neste modelo: Soprano / Contralto / Tenor / Baixo.
As flautas harmônicas
Estas flautas foram desenvolvidas a partir das flautas barrocas, geralmente possuem chaves nas notas mais graves que também facilitam a emissão das notas da terceira oitava, e possuem o tubo ligeiramente mais cilíndrico e mais largo do que as barrocas. Com o som bem próximo do som de uma flauta barroca porém com um pouco mais de projeção, a idéia destas flautas é ampliar a sua extensão na terceira oitava.
A Mollenhauer oferece as Modern Recorders, ou também conhecida como Tarasov (foto à esquerda), nas versões Soprano (C5), Contralto (F4) e também Contralto em Sol (G4), mas esta última apenas sob encomenda. A soprano possui extensão até o si 4, e a contralto até o mi 4.
A Moeck oferece uma linha muito parecida, são as flautas Ehlert (à direita), disponíveis nas versões Soprano / Contralto / Tenor.
A Küng, também oferece uma linha de flautas que embora não sejam caracterizadas como “modernas”, possuem características semelhantes a estas. É a linha Superio, disponível em quase todas as versões: Sopranino / Soprano / Contralto / Tenor / Baixo / Grande-Baixo / Contrabaixo.
Existem ainda outros luthiers que também produzem flautas modernas, como é o caso do Patrick Von Huene, nos EUA.
As flautas com bocal móvel
A experiência de desenvolver novos instrumentos e ampliar as possibilidades da flauta doce chega ao extremo com as flautas de bocal móvel. Estas possuem o tubo interno seguindo as proporções das flautas harmônicas, porém o bloco e o teto são móveis, e o flautista pode alterar o timbre do instrumento durante a performance, seja pela pressão nos lábios, seja por um parafuso situado abaixo do bocal, seja pela movimentação do teto do canal de ar.
Conheço duas flautas com estas características. As flautas Helder, da Mollenhauer (à direita), disponíveis nas versões Contralto e Tenor, ambas com extensão até o mi 4 e si 3 respectivamente; e também a Strathman Recorder (à esquerda), que é uma flauta contralto com sistema Boehm de chaves e bocal móvel, e dedilhado idêntico ao dedilhado do saxofone.
A flauta Eagle
Esta é uma flauta única, desenvolvida pela luthier Adriana Breukink, com a intenção de ampliar o volume da flauta doce para os padrões modernos, de forma que ela possa ser tocada junto com instrumentos modernos (piano, violino, flauta transversal, ou à frente de uma orquestra).
A flauta Eagle é uma das invenções mais recentes. Foi lançada em 2012 na versão contralto, e agora em 2015, foi lançada a versão soprano. Assim como todas as flautas da Adriana, ela oferece versões diferentes para flautistas “solares” e “lunares”.
A flauta elétrica
O luthier francês Philippe Bolton desenvolveu uma flauta com um captador interno próximo à janela para que a flauta possa ser plugada em um equipamento amplificador, e amplificada como se fosse uma guitarra ou baixo. Segundo Philippe, este sistema pode ser adaptado a qualquer flauta, e pode ser usado para adicionar efeitos eletroacústicos como pedais, distorções e outros, assim como apenas amplificar o som puro do instrumento, com mínima interferência externa.
Com base nesta idéia, a Mollenhauer lançou em 2013 a Elody Recorder, que além de possuir praticamente as mesmas qualidades da Modern Recorder (Tarasov), possui um captador interno selado, para evitar que a umidade do instrumento danifique os contatos elétricos após alguns anos de uso. Um instrumento perfeito para quem toca em bandas de rock e música popular.
A flauta doce é um instrumento vivo
Com tantas pesquisas sendo desenvolvidas, e tantos construtores fazendo novos instrumentos da família da flauta doce, vemos que temos um instrumento vivo nas mãos, evoluindo com as novas tecnologias, e que demanda dos seus músicos muito estudo e informação para se manter atualizado com tantas novidades, e também para estar apto a tocar toda essa infinidade de diferentes instrumentos de sua família.
É importante deixar claro que ainda existem muitos outros instrumentos não citados neste artigo, como por exemplo as flautas medievais, de transição (renascença/barroco), as diversas afinações dos instrumentos históricos, os instrumentos modernos que ainda estão em fase de protótipo, e muitos outros. Não tenho a pretensão de criar um guia de todas as flautas, mas sim, de esclarecer sobre a imensa quantidade de instrumentos da família da flauta doce.
By Quintaessentia.com.br
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